Quando despertei do pesadelo Filipe me encarava com o olhar carregado de incertezas. O acesso à Praia do Espelho era tudo, menos fácil. Não havia hospital, nem farmácia por perto. Mas naquele momento, uma coisa era cristalina dentro de mim: eu ia pedalar, custe o que custar!
Ignorei a dor que queimava no tornozelo e me obriguei a colocar o pé no chão. Cada passo era uma batalha, mas continuei. Desci até a recepção com a determinação de quem já venceu a guerra e perguntei: "Vocês têm algo para dor?" Como um sinal dos céus, me entregaram um comprimido que funcionava como anti-inflamatório — exatamente o que meu corpo pedia para não me trair.
Logo depois, seguimos para o café da manhã, e que experiência! Um verdadeiro presente — delicado, saboroso, memorável. Nos aprontamos com a energia renovada e, sem olhar para trás, seguimos com alma leve e espírito destemido: o destino era Trancoso!
- Data: 15/06/2025
- Tábua das Marés: 12h14 - 0,51m
- Distancia: 15 km
- Dificuldade: Fácil/Média
Por sorte — ou talvez teimosia com sorte —, o trajeto até Trancoso prometia ser curto. Eu não sabia ao certo quantos quilômetros enfrentaríamos, mas chutei algo entre 13 e 17. Compartilhei essa estimativa com Filipe e, sem pensar muito, decidimos encarar o caminho pela praia.
Sabíamos que a maré só começaria a baixar por volta do meio-dia, então partimos por volta das 10h, torcendo para o tempo estar a nosso favor. Logo no início, a realidade se impôs: a faixa de areia estava estreita e tomada por pedras. De longe, já dava pra ver o desafio desenhado no horizonte.
Cada trecho era uma pequena missão. E ali, na força do companheirismo, Filipe tomava a dianteira. Ele me pedia que esperasse, atravessava com a própria bike com esforço redobrado e, sem hesitar, voltava para buscar a minha. Era como se, juntos, cada obstáculo ficasse menor — mesmo quando a paisagem dizia o contrário.
A cada avanço, o terreno parecia testar nossa vontade. A areia fofa muitas vezes nos impediu de pedalar — só restava empurrar as bikes com cuidado. Felizmente, até o clima estava a nosso favor: o céu nublado e o vento suave deixavam o dia incrivelmente agradável, como se a natureza também torcesse por nós.
Mas havia algo mágico naquela travessia. O contraste entre o esforço físico e a beleza selvagem da praia fazia tudo valer a pena. O mar, mesmo ainda alto, desenhava curvas de espuma que hipnotizavam, e o som das ondas parecia nos incentivar: “Vão em frente!”
Em meio a essa mistura de desafio e deslumbramento, houve momentos em que precisei parar, respirar fundo e conter a dor latejante no tornozelo. Mas desistir? Nem pensar. O remédio começava fazer efeito e a adrenalina fazia o resto. Era como se o corpo soubesse que não podia falhar. Não agora.
Seguimos em frente sentindo que cada quilômetro era um pequeno triunfo. E ali estávamos nós — dois teimosos, movidos por coragem e paisagens que tiravam o fôlego — indo na direção de Trancoso, pedalando não só com as pernas, mas com o coração.
Em meio à travessia, algo me fez parar. À frente, um coqueiro caído na areia chamou a minha atenção. O tronco estava tombado, vencido talvez pelo tempo ou por alguma tempestade — mas o que realmente me tocou foi o inesperado: a ponta ainda estava erguida, com folhas verdes, vivas, vibrantes.
Fiquei ali, olhando por um instante mais longo do que deveria. Apontei para Filipe e disse, com um sorriso:
— Olha aquilo… sou eu. Tentaram derrubar mas ele continua, ainda verde, ainda de pé e ainda vivo!
Ele riu, compreendendo na hora. Era mais do que uma metáfora: era o retrato fiel do que eu sentia naquele momento. A dor no tornozelo, a areia fofa — nada disso havia me parado. E ali, naquele coqueiro resiliente, eu me vi inteira.
Seguíamos firmes, quando o som das ondas começou a se misturar com o murmúrio de águas mais calmas — era o Rio dos Frades se anunciando. Assim que nos aproximamos da margem, um frio percorreu minha espinha. Meu coração disparou com a ideia de ter que atravessar aquele rio com as bicicletas. E se fosse fundo? E se a correnteza estivesse forte?
Olhei para Filipe tentando disfarçar o nervosismo, mas ele já sabia. Fomos caminhando devagar pela margem, buscando alguma solução, quando lá no fundo, como um sopro de esperança, avistamos uma canoa motorizada flutuando tranquila sobre as águas.
Sem pensar duas vezes, levei as mãos à boca e gritei:
— Você pode nos dar uma carona?!
A resposta veio como música:
— Sim, pode vir aqui!
Naquele instante, senti o alívio invadir meu corpo como uma onda morna. Não era só uma travessia de rio — era mais uma vitória no meio dessa jornada imprevisível. Era o universo dizendo: “Vai, continua. Tô com vocês.”
A essa altura, eu já me sentia premiada pelo dia — por cada pequena vitória, pelo clima agradável, pela travessia que parecia impossível e estava fluindo. Tudo conspirava a favor. E foi aí que o universo, mais uma vez, me surpreendeu com um presente inesperado.
Durante toda a viagem, observei siris correndo pela areia, sempre em disparada em direção ao mar. Por diversas vezes pensei: "Ah, se eu conseguisse fotografar um desses..." Mas eles nunca colaboravam — sempre rápidos, sempre ariscos. Até que, no caminho rumo à canoa, ele apareceu. Um siri solitário, calmo, quase sereno. Estava ali, bem à nossa frente, como se soubesse. Parou. Ficou imóvel. Me olhou (pelo menos eu gosto de pensar que sim) e pareceu dizer:
— Vai, agora é a sua chance!
Com o coração leve, puxei o celular e tirei a foto. Assim que cliquei, ele retomou o movimento, tranquilo, como se dissesse: Missão cumprida. Agora posso ir.
E eu sorri. Porque naquele momento simples, entendi: quando a gente segue com coragem, mesmo sentindo dor, a vida retribui com poesia nos detalhes.
Subimos na canoa com as bicicletas cuidadosamente apoiadas, e começamos a travessia tranquila para o outro lado do Rio dos Frades. A água balançava suavemente, e o motorzinho fazia seu trabalho enquanto o céu nublado seguia cúmplice da nossa jornada.
Durante o curto percurso, o senhor que nos conduzia abriu o coração em poucas palavras. Contou que havia passado por um período difícil de saúde e que vivia da pesca — mas os tempos não estavam fáceis. Disse que aquele barquinho era emprestado de um amigo, uma tentativa de continuar trabalhando apesar das incertezas. Como o clima não estava muito bom, ele achava que o dia renderia pouco, talvez quase nada.
Quando chegamos à outra margem e começamos a desembarcar, meu coração já estava decidido. Estendi a mão e entreguei a ele o mesmo valor que havíamos pago em outras travessias. Mas para ele, aquilo parecia muito mais do que dinheiro. Seus olhos brilharam, e um sorriso genuíno tomou seu rosto com uma alegria tão contagiante que nos envolveu completamente.
Foi como se, por um instante, tivéssemos trocado forças: ele nos ajudou a atravessar fisicamente e nós, de alguma forma, atravessamos com ele uma dificuldade invisível. Um encontro breve, mas cheio de significado. Um lembrete de que gentileza tem peso, tem valor — e gera mais gentilezas.
Mas o mais curioso é que o dia ainda guardava mais surpresas. Logo após a travessia, descemos por uma espécie de duna em direção ao mar. A ideia era simples: chegar à faixa de areia mais firme para retomar a pedalada. Paramos por um instante para registrar a paisagem — o tipo de foto que eterniza o momento em silêncio. Foi quando de repente, Filipe olhou fixamente em direção à água, franzindo a testa e disse:
— Tem alguma coisa ali…
Ele se aproximou mais um pouco, e então viu: um peixe enorme, encalhado, debatendo-se na beira do mar.
Sem hesitar, largou a bicicleta no chão e saiu correndo, atravessando o banco de areia até os pescadores que ainda estavam à margem do Rio dos Frades.
— Tem um peixe grande encalhado! Preciso de ajuda!
A reação foi instantânea. Ele e alguns pescadores dispararam de volta em direção ao mar. Os homens entraram na água decididos, com a força de quem entende o valor da vida em todas as suas formas. Um deles chegou a gritar que poderia ser um golfinho. E aquilo mudou tudo — deixou o ar carregado de urgência e emoção!
Sem pensar duas vezes, entraram no mar juntos, em um esforço quase heroico para tentar salvar aquele ser que lutava sozinho contra o destino.
Foi como assistir a uma cena de filme ali, ao vivo, diante dos meus olhos, no meio de um dia já cheio de reviravoltas!
Depois de tudo isso, seguimos como que anestesiados. O caminho final até o hotel pareceu curto, como se o tempo tivesse diminuído o ritmo só para nos deixar absorver tudo o que havia acontecido.
Chegamos ao nosso refúgio em Trancoso, onde já havíamos feito a reserva. A ideia era simples: chegar cedo para explorar a famosa Praça do Quadrado, passear com calma, sentir o charme do lugar. Mas já havia exigido demais do meu pé.
Ao invés disso, nos sentamos no próprio hotel para uma refeição deliciosa, que chegou como um abraço silencioso. A comida parecia ter sido feita sob medida para aquele momento: reconfortante, saborosa, perfeita.
Depois, deixamos que o cansaço nos levasse. Passamos o restante do dia no quarto, em um silêncio bom, daquele tipo que só acontece quando a mente ainda está tentando entender a grandiosidade do que se viveu. Sem pressa, sem pressão — apenas aguardando, com o coração em paz, o que mais a estrada ainda guardava para nós nos próximos dias.
Gastos:
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